sábado, abril 23, 2005

Mais uma cronica de Berkeley da Pedrosa

Se já não concordava com algumas coisas da primeira crónica desta senhora, esta segunda tem tantos disparates que hesitei enormemente antes de a trascrever. Mas enfim, é sobre Berkeley e aqui e ali até descreve um pouco do ambiente. Só ainda não percebi o que anda ela para aqui a fazer...

Diários de Berkeley II - Inês Pedrosa

Não sei se por causa da gloriosa chegada da Primavera, em Berkeley toda a gente parece sorrir permanentemente. «Daqui a um mês e pouco começa a estação dos choros», garante Deolinda Adão, coordenadora do Programa de Estudos Portugueses da Universidade. Explica-me que uma chuva de lágrimas, por estes relvados agora tão soalheiros, marca a época dos exames. Conta-me que, no ano passado, um rapaz chinês se suicidou atirando-se do alto do edifício de Matemática, à hora do almoço: «Caiu mesmo ao lado daquele jardim, onde decorria um enorme piquenique. Ainda foi uma sorte não ter morto mais ninguém.» E tudo porque tivera um A- num teste. Nem sequer era um B. Chegam aqui habituados a serem os melhores da escola, e não aguentam descobrir que os outros são tão bons ou melhores do que eles. «O caso do chinês não é único; o que é raro é que os suicidas escolham a povoada hora do almoço para dar o salto derradeiro. Escolhem sempre o edifício de Matemática, que tem o azar de ser o mais elevado (e o mais feio) de todo o «campus» e de ser circundado por uma plataforma de cimento; por isso aquele bloco é já conhecido como «o departamento do suicídio». A outra miséria competitiva de Berkeley é a praxe: no início deste ano escolar, um caloiro morreu literalmente afogado no seu próprio corpo, pelo excesso de água que o fizeram engolir. Esta semana, um outro foi parar ao hospital, esfacelado por inúmeros pedaços de metal disparados por armas «de brincar». Segundo o noticiário local, as autoridades aumentaram agora a vigilância em torno das «irmandades» de rapazes ou raparigas, versão local das «repúblicas» coimbrãs, depois de descobrirem que algumas delas funcionavam como centrais de droga e de produção de filmes pornográficos.

Quem frequenta as múltiplas, gigantescas e luminosas bibliotecas desta universidade, abertas a todos os que as quiserem frequentar - vários sem-abrigo passam ali os dias a ler - ou o centro de desporto onde há sempre aulas a decorrer, salas cheias de música e movimento, rodeadas por larguíssimos corredores onde dezenas de estudantes pedalam nas bicicletas de ginástica enquanto lêem, quem se senta na relva e observa as constantes nuvens de jovens, com livros debaixo do braço, conversando e rindo, não imagina que esta realidade solar possa ter como reverso uma espiral ilimitada de competição e violência.

Berkeley, como qualquer instituição de ensino, acaba por ser um resumo do melhor e do pior do mundo. Quando o melhor é mesmo muito bom, o pior tende a ser a tragédia absoluta. Esta universidade foi criada no século XIX a partir do sonho pueril de construir uma versão americana da Grécia, um lugar de ensino peripatético e integral, onde a moderação cintilasse e apaziguasse todas as paixões humanas. Para além dos vários edifícios inspirados na arquitectura da Grécia clássica e de um estádio desportivo com colunas dóricas, há um teatro grego, que durante o Verão serve concertos rock e durante o Inverno não serve para nada, por causa do vento e da falta de iluminação. E há as sandálias, de modelos muito desviados de qualquer espírito clássico, que parecem ser o calçado transmeteorológico e universal - as das raparigas, em geral, tão vertiginosas como o edifício de Matemática.

Dentro da biblioteca central há uma irresistível livraria alfarrabista onde se vendem preciosidades por meio tostão. Não é metáfora: todas as quintas-feiras se encontram ali várias estantes de livros à venda por cinco cêntimos de dólar. Claro que é preciso ter tempo para escavar os monos até alcançar os diamantes, como uma edição espanhola do «Dom Quixote», de 1922, com gravuras de Gustave Doré, ou a primeira edição da «Lolita» de Nabokov. Da última escavação trouxe, pela perdulária soma de três dólares, um interessantíssimo ensaio de Robin Morgan, datado de 1989: «The Demon Lover - on the Sexuality of Terrorism». Para além da análise feroz e ferozmente experimentada da sobrevivente ao fascínio terrorista que Robin Morgan também é, encontro nestas páginas reflexões que adquirem uma acuidade exemplar, neste início de século em que se verifica uma desvalorização contínua, militante, do pensamento feminista a par de um crescimento exponencial da competitividade e da obsessão pela excelência.

Escreve Morgan: «Se eu tivesse que nomear, através de uma só qualidade, o génio do patriarcado, ela seria a compartimentação, a capacidade de institucionalizar a desconexão. O intelecto excluindo a emoção. O pensamento separado da acção. A ciência afastada da arte. A Terra dividida em si mesma; fronteiras nacionais. Os seres humanos catalogados por sexo, idade, raça, etnicidade, preferência sexual, altura, peso, classe, religião, competências físicas, ad nauseam. O pessoal isolado do político. O sexo divorciado do amor. O material em ruptura com o espiritual. O passado apartado do presente e em disjunção com o futuro. A lei desprendendo-se da justiça. A visão dissociada da realidade».


Por alguma razão os estudantes suicidas de Berkeley, asiáticos, americanos, hispânicos ou afro-americanos - a universidade é um faustoso bufete de cores e nacionalidades, com uma visível predominância de pessoas de origem asiática - são sempre do sexo masculino. As mulheres resistem melhor à derrota, provavelmente porque foram educadas para acumular e relativizar em vez de compartimentar e extremar. Ironicamente, a educação para a fragilidade tornou as raparigas mais fortes; podem sentir-se sobrecarregadas, mas essa sobrecarga traduz também uma estereofonia de interesses que as mantém à tona. Até porque possuem o direito ao lago das lágrimas que continua interdito aos rapazes, um lago onde podem libertar-se dos pesos excessivos da existência e nadar até à próxima margem. Compartimentar é matar; defendendo a complementaridade e a interacção de todas as esferas da vida, a filosofia feminista parece agora a única esperança de sobrevivência para o sexo masculino.

1 Comments:

At 12:29 da tarde, Blogger Ana Rangel said...

Realmente, ela não deve ter bem a noção do que escreve... :S

 

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